JÁ COM SAUDADES

 



Não me lembro de uma única conversa com a obatiam. Mas não faz mal porque nossos laços foram apertados de outro jeito. 

 

Uma espécie de vácuo nasceu com a sua morte e tropeçando aos soluços, vai sendo preenchido por lembranças. Sem a sua partida, pode ser que eu não estivesse neste instante revivendo momentos tão afetuosos ao seu lado. Ela ficou tão longe e tão perto agora.

 

Voltei ao parquinho, com uma colher de sopa na mão para brincar na areia, desde que eu lavasse bem as mãos depois, porque a areia da cidade não é igual areia da praia. Sentei no balanço para ela dar o primeiro impulso e senti uma agonia lá embaixo junto com vontade de dar risada, sem saber que era frio na barriga. Cheguei do parquinho, subi pelo elevador com portas pantográficas que não podia pôr o dedo jamais, lavei bem as mãos e esperei sentadinha na cozinha, fitando a geometria bonita do ladrilho hidráulico do chão, ela fritar mandiopan, para a gente comer passando no açúcar. Era um prédio Art Decô de granilite rosa que coloriu minha memória, ainda bem. Subi no banquinho da sua penteadeira com três almofadas xadrez azul turquesa de lã empilhadas que pinicavam a coxa, para que eu pudesse me alcançar no espelho. Me penteei com a escova de cabelo com cabo e cerdas verdes, me pintei com um estojinho de sombras e passei o batom marrom com cheiro de gaveta. Era me maquiar, para automaticamente eu cruzar as pernas curtinhas para observar com atenção ela ao meu lado fazendo bobes em si mesma, separando as mechas de cabelo com o cabo do pente e prendendo-as com grampos nos rolinhos, um para lá outro para cá. Ela falava só em japonês com o oditiam, e às vezes uma ou outra palavra saia em português: “tototokakakananinani vaidosinha, né?” e davam risada. Me acostumei a interpretar as conversas através de uma única palavra-chave. Na hora de dormir, ela juntava as duas poltronas (que eu herdei e travo uma batalha feroz e cansativa contra os cupins que não irão roer minha memorável caminha), uma de frente para a outra, arranjando um leito de jacquard do meu exato tamanho, como uma forminha aconchegante.

 

Viajamos para Ubatuba de férias. Apertados dentro da Belina, com a vara de pescar dela atravessando o carro de comprido. O Pedro, meu irmão, que a acompanhava na pescaria em cima das pedras. Será que lá eles conversavam? Acho que não, também porque espanta peixe, era o silêncio e os gestos que amarravam os afetos. Quando fiz as malas tava pensando mais no obentô da obatiam do que nos biquínis. Paramos em um posto arborizado para fazer xixi, comprar Coca e, célebre momento, comer obentô. Tinha coxinha, linguiça, onigiri, omelete e shogá. Aprendi a fazer onigiri, olhando como ela fazia e repetindo seus movimentos, gira, aperta, vira para o outro lado. Dizem que o onigiri que você faz é do tamanho do seu coração. O barulhinho do arroz grudando e soltando dos dedos a cada girada, a passada de sal na palma da mão, a quentura que faz a gente girar rápido, o perfume de gohan evaporando, me transportam sempre para a existência ao seu lado. 

 

Voltei no tempo em que morei com ela, já em outro apartamento, quando fiz cursinho. Subi pelo elevador de fórmica cor de flamingo e adivinhei pelo cheiro, o que ia ter para comer. Almocei carne com shoyu, shirogohan e feijão e jantei pastel com misoshiru. E, dentro daquele cubículo psicodélico, adivinhei tempurá, batayaki, estrogonofe, udon, yakisoba, purê de batata com carne moída, feijoada, sukiyaki... Ela ria do meu faro de bidu. Fiz regime pela primeira vez, o da lua, a minha calça semi bag tamanho 36 da M.Officer começou a apertar um tanto capaz de me gangrenar por inteiro. Pedi para ela não fazer bife com batata frita e feijão temperado na hora, senão eu não resistiria. De sobremesa, sempre tinha uma laranja descascada partida ao meio com a banda mais doce e menor, para chupar por último.

 

A pia da cozinha foi ficando cada vez mais alta para a obatiam. 

 

A obatiam não faz mais natação no Sesc e por isso não tem mais sentado no meio do caminho que fazia a pé, uma ladeira, para recuperar o fôlego no banquinho dos taxistas que ganhavam bolo quando ela fazia aniversário. Eles também devem ter saudade.

 

Olhei para ela sentadinha ao sol, de chapéu e ela riu.

 

Tenho viajado com frequência para este tempo cor de rosa antigo, que transborda um afeto cheio de sabor e lágrimas de saudade.

 

Ela ainda ri, sempre.

 

Setembro de 2014.


Foto Isabel Mascaro

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