GAL




Aplacar a dor de uma morte não é fácil e na vã tentativa, há uma beleza difícil. As lembranças vêm à tona, revivemos em atropelos chorosos as mil e uma histórias em uma memorável despedida ilustrada. Um cineminha particular.

Gal de tanga vermelha transparecendo a “Maricota” (apelido, vocês podem imaginar do quê, que meus pais criaram para, com carinho e delicadeza, poderem conversar naturalmente com suas filhas pequenas) repartida ao meio, no passado foi minha vergonha, depois a falta dela. Seu volumoso cabelo jogado de lado e preso com duas rosas era meu penteado inatingível, pois grampos sempre escorregaram e caíram indisciplinados da minha cabeça. As capas dos seus lps foram iconografias da minha vida.

Gal dançando com os peitos naturalmente lindos quase aparecendo e depois exibidos por ela, de propósito, me contaram sobre empoderamento muito antes dessa palavra estar na boca de todo mundo.

Gal tinha os sovacos e as saboneteiras que mais admiro. Sempre meio pelada, genuinamente bela. Quando poso com as mãos na cintura, é nela que penso.

Gal de batom vermelho colorindo sua enigmática boca larga com dois biquinhos definidíssimos apontando para o alto, foi uma das minhas referências de beleza, despertou o desejo de exaltar a minha boca tímida. Foi já quase adulta, no shopping, que experimentei dentro da loja, fingi normalidade, mas tão nervosa estava, que suei estilo cê-cê. Só via a minha boca a la Gal refletida nas vitrines, arrastando o resto do meu corpo. Baixava a cabeça para mim mesma. Mas não esmoreci. Enfrentei até incorporar seu bocão vermelho inigualável.

Gal me faz entrar errado em Índia, gravação orquestrada, música que vai em uma toada crescente espetacular, mas que na ansiedade, coitada de mim, sem exceção, sempre me adianto no gran finale, Paraguai aaaaaaaa uuuuuuuuu. Inclusive hoje, 09 de novembro de 2022, não decepcionei, quando fui ouvir para escrever com mais emoção ainda, mantive meu estilo.

Gal tocou no primeiro bailinho disfarçado de festa à fantasia, organizado por mim e minha amiga. Lygia vestida de Sol e eu de Charleston só para ter aval de vestir uma meia arrastão. Dancei com a vassoura, mas mais tarde fui tomada em Festa do Interior e Balancê, por um êxtase feliz que foi capaz de derrubar a chatice da timidez, me fazendo dançar para além de mim.

Gal nos embalou estrada a fora no toca fitas da Belina, nas inesquecíveis férias em família, eu e meus irmãos cantando no banco de trás em todos os momentos em que não estávamos brigando para um não encostar na coxa piniquenta do outro. Viajamos milhares de kilometros até Porto Seguro e depois até o Recife. Haja música. Um Dia de Domingo, Gal em dueto com Tim Maia, nos fazia cantar em coro e jogral, variando, como The Jackson 5, com um calor da moléstia, janelas abertas e o vento quente no rosto.

Gal, obrigada por ilustrar e afinar minha vida, para sempre. 


Novembro de 2022.

Foto Bob Wolfenson

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