Ao Japão, com muito amor


Fui conhecer o Japão com meus pais e irmãos, o sonho da minha vida. Agora estou transbordando, não estou mais cabendo dentro de mim. Não sei se já era hora de escrever porque as palavras não estão sendo suficientes para descrever o que vi e vivi, mas tenho medo das minhas impressões tornarem-se escapistas demais. Dá vontade de fazer poesia mas eu não sei. Desconfio que será um tema recorrente nas minhas escritas, é sem fim.

Não poderia estar em outro lugar, longe, muito longe, do outro lado do mundo, esta ilha onde quase tudo é ao contrário. Pela primeira vez, deixei de ser minoria, mesmo sendo só metade japonesa, pelo lado materno, sumi camuflada no meio de estranhos. Reconheci milhares de pernas tortas como as minhas, que nem as cruéis botinas ortopédicas da infância conseguiram corrigir. Me orgulhei do meu “defeito”. Me perdi no silêncio de um mar de japoneses velozes que nunca se esbarram andando rápido e cadenciado. Parecia que havia sido ensaiada aquela coreografia diária sem erro, como em um filme, só que no "mute". Emudeci involuntariamente, adoeci e fiquei afônica, acho que para fazer parte do filme, mesmo que só figurante. E nós cinco a pé recorrentemente na mão contrária, atrapalhando o fluxo, sempre tentando não cometer uma gafe, observando uma delicadeza inexistente no nosso cotidiano, naturalmente tão bela. Quero ser delicada nata a partir de agora, ter o gestual gentil dos japoneses, que estendem as duas mãos em conchinha para dar ou receber qualquer objeto, falar menos e mais baixo, esconder o sorriso com uma das mãos. Quero embrulhar linda e sofisticadamente, desde o peixe do mercado até o presente da noiva. E também me embrulhar em camadas de preciosos tecidos de seda, vestindo um kimono lindo de morrer para sair andando com passos pequeninos e graciosamente tortos, enfeitando os caminhos por aí. Preciso aprender a pentear meus cabelos como esculturas sinuosas, transformando os longos fios brilhantes em movimentos como os das águas. Farei de um tudo para ter a pele mais extraordinária que eu já vi e achava que não existia, a das japonesas, como bonecas, de porcelana.

Em Kyoto vi uma gueixa. Uma aparição. Paralisei diante daquela figura sublime e enigmática que sumiu no beco como mágica. Me emocionei. Nunca irei me esquecer de tamanha beleza, um rosto alvo para uma boca vermelha, um penteado escultural, vestia um kimono bordado de seda rosa, com detalhes vermelhos, pretos e dourados. A nuca, linda, desenhada com os fios de cabelos que nascem ali, branca e emoldurada pelo decote em camadas, curvo e caído nas costas. Resolvi, neste instante que seria gueixa. Mas logo descobri que é tarde demais, teria que ter tomado esta decisão aos quatorze anos, ainda virgem, inclusive das ideias.

Ah, a praticidade e a inventividade japonesas. O vaso sanitário japonês resolve todos os problemas que você já teve na sua atividade diária mais íntima, até os que você não sabia que tinha. Com todos os problemas básicos resolvidos, sobra muito tempo para eliminar as agruras cotidianas. O vaso tem o assento quentinho, para não te dar aquele chato choque térmico ao sentar, faz barulhinho de água corrente, para o xixi sair desinibido, têm jatos de água certeiros direcionados para a frente, no caso das mulheres, e para trás, para todos, e você ainda pode regular se quer mais pontual ou mais chuveirinho. Depois um vento seca tudo. Pilotar um vaso desses não é para qualquer um. Quando estava craque, já era hora de voltar. Pense em um problema corriqueiro, mas não por isso menos irritante. Lá eles já resolveram. Trim com porta unhas, genial, acaba com 50% das brigas com a sua cara metade. Mesmo sendo uma das coisas mais cafonas do Japão, as comidas de plástico são um didático e fiel cardápio. Não tem erro, vem igual ao que você viu, só menos brilhante.

O que fazer depois de comer o atum verdadeiro, honmaguro, de Ooma? De ralar na casca de tubarão o wasabi que só nasce na água corrente e cristalina, e demora até dois anos para ser colhido, de um frescor só? De comer os udons mais saborosos da sua vida? De experimentar Kobe beef de Wagyu? De sermos recebidos por um grande chef, que só atende seis clientes por noite no seu balcão, com a maior amabilidade, simpatia, gentileza, humildade que você já viu, que faz um oniguiri para cada um de nós levar e comer no dia seguinte, depois de te servir uma sequência de treze inesquecíveis e inigualáveis pratos acompanhados dos melhores saquês da vida e vai despedir-se lá na rua de todos nós junto com toda a sua afinada e concentrada equipe, até a gente sumir dobrando a esquina? O paladar japonês é muito sofisticado e minimalista, incomparável, específico. Sou uma amante de arroz. Fico ofendida com esses sushis maltratados que qualquer um acha que sabe fazer. A comida de poucos ingredientes, de pouca e precisa manipulação, é a mais difícil de ser feita. Os alimentos japoneses têm seu cultivo, seu tempo, sua maturidade e essência respeitados. Tira-se o melhor do melhor. Puro refinamento.

Em Tóquio, a cidade funciona, como uma engenhoca, engrenada, viva e acima de tudo funcional. A fiação elétrica é, na maior parte das vezes, aérea. A cidade é toda entrecortada por "minhocões", embaixo deles tudo acontece, cada espaço é inteligentemente ocupado, bem resolvido, surpreendente, curioso e faz com que a cada passo haja uma descoberta, um achado. Edifícios que eu já conhecia por fotos e imaginava grandes, parecem miniaturas ao vivo. Uma escala tão peculiar que muitas vezes lembra um cenário construído por pequenos volumes que se encaixam formando uma paisagem instigante. Ao fundo, ouve-se com frequência o piado do Corvo, bonito, triste e marcante. Se mistura com a gravação de alerta para deficientes visuais nos faróis, um piadinho mais doce. A vaidade é uma unanimidade entre os gêneros e assim figuras circulam por este espaço com uma liberdade de expressão ao se vestir de dar inveja. Atravessam a mesma rua os engravatados, as amigas de mini, mini, mini vestido, uma com chifres de glitter a outra com asas, a moça elegante toda plissada de Issey Miyake, a linda de kimono e nós cinco admirados.

Paira sobre os japoneses um alerta constante, o medo do grande terremoto, tragédia iminente, inevitável, que um dia chegará. Não faço ideia do tamanho do pavor contido que cada japonês carrega dentro de si. Como administrar e conviver com uma angústia assim? Imaginei que talvez esse silêncio desmedido que os cerca tenha a ver com isso. Estou com medo também. Voltei transformada. Matei uma saudade ancestral e criei uma vital, se não voltar ao Japão, morro, de saudade. Carrego agora duas frustrações, a de não ser bailarina nem gueixa. Percebi que a minha privada tá mais para um penico. Sei que não conseguirei comer lindamente como uma japonesa diariamente, também porque bacon e creme de leite me enchem a boca d'água. Descobri que, nos meus sonhos mais longínquos, prefiro morar na caótica Tóquio do que na bela Paris. Hoje tenho dois grandes medos, o de morrer e o do Japão sucumbir ao desastre natural, me matando, de tristeza. Mas mesmo sofrendo, sou muito feliz aqui em São Paulo e muito mais japonesa.

Novembro de 2014.

Fotos Isabel Mascaro

     





Comentários

  1. O texto me conduziu para os lugares e quase senti os sabores. A vontade que tinha de conhecer o Japão, aumentou!

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