Mãe, estou com saudades



Você e o papai me contaram que quando eu nasci você quase morreu. Já pensou eu sem você?
Eu não seria eu.
Foi você quem me vestiu de noiva e pintou minha boquinha de batom cor de vinho com gosto de violeta, ensinou a apertar os lábios um contra o outro, passou rouge e fez uma pinta com lápis preto no meio da minha bochecha no dia do meu casamento junino, que não houve pois eu fugi do altar. Esqueci o nome do noivinho. Mas lembro perfeitamente do vestido que a obatiam fez, que ainda existe e hoje é uma roupinha puída de boneca.
Foi você quem fez os conjuntos mais lindos de flanela florida, cetim e fitas para eu dançar quadrilha, me pintou com mesmo batom e a pinta falsa. O gesto dos teus dedos torcendo o lápis e pressionando a ponta preta contra a minha bochecha, trás uma lembrança doída e vaidosa. Fez penteado de mechinha de cabelo torcido e prendeu com grampo que logo escorregava antes da dança. Graças a você nunca usei aqueles chapéus feios de palha com uma trança fake pendurada. Era um penteado de verdade, mesmo que efêmero.
Foi com você que eu cansei de argumentar que queria escolher minhas roupas só se estivessem “combinantes” e insistia só usar saias de Maria Mijona, como você chamava.
Foi você quem deixou os retalhos de tecido caírem da mesa de pingue-pongue improvisada de mesa de corte, pra eu fuçar no lixo e escolher os tecidos mais lindos para fazer as roupas de gala da minha Barbie. Desde pequena eu soube o que era seda javanesa, linho, cambraia, tricoline, voil, sarja, ana ruga, crepe de chine, piquê, delavê, blusê, botonê, changeant, pois, pied de poule, precocemente já era uma mini estilista formada, não haveria maneira de eu não seguir seus lindos passos.
Foi você quem embalou meu sono muitas noites ao som da tesoura finlandesa cortando tecido, deixando os carneirinhos invejosos.
Foi você quem aguentou meu mau humor na hora de escolher a calça baggy da Ravage ao invés da Zoomp, pois era o mesmo fabricante, assim como o sapato da Tobago ao invés da London Fog. Issoaê foi meio difícil de perdoar.
Foi você quem cultivou minha paixão por sapatos, que cresceu igual erva daninha, quando te assustou, tentou podar, mas já era tarde. Agora disputamos os mesmos pares filhos únicos tamanho 34 nas lojas.
E mãe, foi você quem me fez japonesa, que me deu a pele lisinha, meus peitinhos pequenos e lindos como os das japonesas que eu vi peladas no onsen lá no Japão, iguais aos seus.
Como você é bonita. Além disso, não tem chulé, nem cecê, como a Bailarina.
Foi você quem me deu as belezas da vida, me deu instrumento e perspicácia para ser estilista. Me mostrou que a beleza não é fútil, nem supérflua, e sim saborosa e aliada.
Mãe, se eu não tivesse você, seria feia.
Obrigada, mãe.

Abril de 2020.
(carta que escrevi à minha mãe no início da pandemia)

Fotos Cristiano Mascaro



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