Triste, exausta e esperançosa
Ela veio de longe, crescente, como
uma onda inundando, varrendo continentes, invisível, devastadora. Em câmera
lenta, mas de repente, o ar faltou no mundo.
Eu ainda nem tinha dado conta da
minha condição, meu problema no coração, o risco maior que corro. Letal. Num
piscar de olhos, ela já estava presente me encarando, esperando eu dar bobeira.
Mantenha-se sempre alerta, Isabel, mas não perca a sanidade. O tempo tem me
estranhado. Pensei em comprar aquele porta comprimidos com dias de semana para
velhice, quando esqueceremos se já tomamos os remedinhos ou não, pois,
aconteceu comigo, fiquei olhando para o copo d’água, aflita, pedindo para minha
memória cooperar, fui e voltei até a cozinha, e nada, resolvi tomar meio. Meu
mundo ficou radioativo. Minha casa, meu bunker. Isolamento. Dias da marmota sem
fim.
Tapou com máscara meu mais apurado
sentido. Proibiu os afagos das pessoas mais queridas, me escondeu dos raios de
sol dos quais eu sempre fugi mas que conseguiam me alcançar o suficiente para
eu não passar de alva-contraste para o verde-doente, guardou o prazer de me
vestir e ser medida de cima abaixo, suspendeu meu amado ofício de desenhar e
vestir as mulheres, é temporário mas parece uma eternidade. Conteve meu fôlego,
roubou meu sorriso e meu tempo, os olhos de fora são testemunhas. Mas empurrou
goela abaixo, troca injusta, vídeos toscos robóticos e desconexos com as
pessoas queridas fingindo normalidade e não conseguindo disfarçar tristeza que
grita junto com a microfonia, a sombra, pijamas e mais pijamas com chinelo e
meia e coque mal feito com piranha de plástico, improdutividade e ócio sem ser
do romântico. Pernilongos fora de época vieram de brinde. Meu varal fica tão
deselegante com as máscaras, olho e me desanimo.
Nunca gostei de ficção-científica,
quanta viagem. Ô ironia. Não é um Ensaio Sobre a Cegueira, mas está sendo
um ensaio sobre o sufoco.
Socorro.
Sempre apertei as coisas da rua, onde
todo mundo encosta, com as costinhas das mãos, esperei alguém entrar no
banheiro público para aproveitar e entrar no vácuo sem encostar na porta,
tentei surfar no metrô para não pegar no cano morno oleoso, venci sono em banco
de ônibus para não relar na janela melecada de carimbo redondinho de cabeça,
esterilizei controle remoto de hotel, deixei de usar cobertor de pousada
com pentelho alheio que du-vi-de-o-dó que lavam, entrei na escada
rolante reverberando de maneira calculada no mesmo ritmo igual entrava na
brincadeira de pular corda para obviamente não ter que usar o corrimão,
enxuguei as mãos em toalha de rosto da casa dos outros na área provavelmente menos
tocada e só se não estivesse úmida, lavei os copos antes dos pratos, tomei
banho de cima para baixo para não cruzar sujeira, prendi a respiração na Doutor
Arnaldo por causa do infectado Emílio Ribas e dos mortos evaporando do Araçá,
me safei de perdigotos do tipo que acumulam brancos e corpulentinhos saltando
na sua direção, não dei nem pedi sem ser pro namorado bocada de sorvete ou
qualquer doce em colher que ficam as marcas dos dentes escorregados e o doce
meio derretido e lambido e também não gosto de pisar na grama descalça, nem de
tomar banho de chuva.
Imaginem o impacto dessa pandemia
sobre minhas maneiras.
Mas a esperança é a última que morre.
Pastel de carne e queijo da feira
acompanhado de caldo de cana com limão e das pombas com piolho voando baixo
para bicarem as migalhinhas da massa que caem no chão inevitavelmente. Nem
ligarei para essas feias imundas. Estarei mais concentrada lambendo os dedos,
sentindo o cheiro de coentro e manga madura. Nem ligarei pra a barraca que
vende incenso hippie, o treco mais fedido que existe, só perde para patchuli.
Certamente ficarei de olho no horário que marquei no salão para depilar e fazer
os pés, pintar as unhas de vermelho aberto, já tá calor para calçar a sandália
baixa trançada rosa esmaecido. Nem ligarei se a Nalva tirar um bife. Tô é
pensando em qual dos muitos vestidos que estão loucos para sair do cabide vou
botar para arejar e exibir, se tiver amassado, nem ligarei, desamassa no corpo.
Passarei sim na banca da Joana, para por a vida em dia e escolher um buquê de
flores arranjado de uma maneira que é só dela, que veste minha sala de casa
bonita, nem ligarei se avistar atravessando a rua aquela pessoa chata pra
danar, matarei até saudades de gente mala. Além do mais logo vou sentar na Sede
para tomar vinho, brindar, ser mimada e querida pela Dani e pela Cássia, se
tiver acabado a comida do Checho, ficarei quase mal humorada, mas resolvo com
um hambúrguer da Garagem vizinha, saudades daquela batata frita com maionese
picante.
A Teresa chegará com a Nina logo mais
e eu preciso sentir o cheirinho do cangote com penugem da minha sobrinha, o
mesmo que me invade docinho e cheio de ternura quando a porta do apartamento
delas se abre. Se eu e minha irmã estivermos de mal, não me importarei mais,
esquecerei rapidamente o motivo só de olhar para ela e poder conversar
novamente frente a frente sem ser por áudios tamanho podcast. As baratas pelo
caminho continuarão existindo, me perseguindo e me fazendo sapatear, sim, vou
esbravejar, mandar de volta pro inferno, a vida não pode ser perfeita, afinal.
Pinheiros, me aguarde, tô vacinada.
Outubro de 2020.
(muito antes de ser vacinada, escrevi
este texto imaginando um futuro. Mal sabia eu que um ano depois, imunizada,
nada disso se parece com a realidade, quanta cautela ainda me impede de chegar
perto do mundo sem medo.)
Foto Carl Silva
Ah, Bel ♥️ Como eu amo ler tudo que você escreve… ✨
ResponderExcluirBel, que bom que tem um blog
ResponderExcluirCalma, tudo vai dar certo. Nao tenha medo, so cuidado , ♥️ Lota Vidal
ResponderExcluirBel, tudo já deu certo, creia nisso! Sucesso! Adoro ler o que você escreve! Beijinhos
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