Fotografia




Sou filha de fotógrafo, irmã de fotógrafo, fui cunhada e vizinha de fotógrafos e hoje namoro um fotógrafo. Que onomatopeia deliciosamente sem intenção soa piscando o diafragma em estalos mecânicos macios. 


Um retrato te desnuda, fragiliza, invade, constrange, seduz, aguça a vaidade, te revela para si, perpassando pela observação alheia, sua interlocutora, trava-se um belo diálogo silencioso. Quando criança eram recorrentes os ensaios orquestrados pelo meu pai, uma brincadeira para mim. Lençóis pendurados no varal formando anteparos esvoaçantes e translúcidos num dia quente de verão, eu e minha irmã na idade da inocência, sem roupas, vestindo só o vento morno, pra lá e pra cá com a franja reluzindo sob o sol. Entre almofadas no final da tarde corríamos contra o tempo, quando a luz batia bonita e efêmera, eu dirigida afetuosamente e obedecendo concentrada, olha para a janela, põe as mãos assim, deita a cabeça assado. Tive ensaio completo no dia do casamento junino, desde a preparação do penteado, batom com perfume de violeta e pinta na bochecha, meticulosamente aprontada pela minha mãe e depois suspensa no ar pelo meu avô orgulhoso demais da neta vestida como uma boneca. Peladinha nem aí, fazendo pose nem aí, casando na festa junina nem aí. Já adolescente, eu virei minha maior e mais cruel inimiga, coitadas. Cansei de me rasgar em fotografias recém reveladas e meu pai vendo as filhas se tornarem mocinhas envergonhadas e chatas, deixou os ensaios de lado. Sebastião Salgado foi o único que roubou um retrato meu com uns 15 anos, na mesa da sala de jantar de casa, sem pedir licença, apontou e disparou em sequência, tão sem jeito fiquei, olhei para baixo, me protegi com os braços como podia, e se fez uma linda imagem, eu evidentemente tímida, boba e muito bonita mas sem o menor traquejo para administrar tanto frescor juvenil. Desconcertada comigo mesma, achei horrível, que despropósito, mas desta vez felizmente não me fiz em pedacinhos graças à educação. Hoje estou exposta na parede da minha sala, admiro a beleza eternizada, eu tão inábil e jovem. Um retrato é uma conquista, fração de segundos de intimidade. Um tanto de voyeurismo existe neles, os fotógrafos, invasores d’alma. Selfies são espelho, auto-retratos-café-com-leite, tiram da cena o autor principal, o olhar do outro sobre você.


A fotografia tem o poder sobre o tempo e o espaço, par ilustre da física, da engenhosidade do universo, perpetua o relativismo da vida em um instante decisivo, suspenso, congelado através do olhar preciso do observador que recorta a imagem invisível da realidade banalmente visível. Ilumina o cotidiano, traça ritmo à arquitetura, maneja a luz, imprime a sombra. Como a literatura retrata, a fotografia lê, mundos para o mundo. Já a pintura deve agradecer a alforria que esta lhe proporcionou, as asas adquiridas após sua invenção. Impressionante expressão, descolamento da realidade, seu livre-arbítrio. 


Sob a neblina da madrugada paira flutuando como um disco voador, a cobertura retangular de um posto de gasolina com bordas fluorescentes, salpicadas por pontos de luz pulverizados no ar. Um olhar de sobrevoo desenha sombras nítidas que duplicam o corpo do trabalhador ajeitando minuciosamente um tapete de grãos de café para secar ao sol formando uma bela geometria que parece desenhada com grafite sobre papel. Pela janela ocular que lembra um espelho oval feminino, uma atmosfera antiga antecede em primeiro plano edifícios contemporâneos no ponto de fuga. Meninos coreografam uma ciranda na chuva que lava tingindo de degradês de cinzas granulados a nitidez da brincadeira equilibrista na borda de uma canoa à beira do rio. Através da grade de ferro envidraçada forjada em curvas, meninas dos olhos curiosas miram para fora com espanto e admiração para um acontecimento que não está descrito na cena, imagine. Olhares cheios de intenção traduzidos em imagens que contemplam um momento único, que não se repetirá jamais, mas que foram capturados para nosso deleite. Estou rodeada pela fotografia, uma beleza.


Bem escreveu Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta” e meu pai conta que com a fotografia quer melhorar o mundo. Desconfio com absoluta certeza que todo fotógrafo é um poeta.


Agosto de 2020.


Créditos das fotografias 

1 Cristiano Mascaro

2 Sebastião Salgado

3 Cristiano Mascaro

4 Pedro Mascaro

5 Nathalie Artaxo

6 Pedro Martinelli 

7 Carl Silva 










Comentários

  1. Esqueceu de dizer que eu sonhava em fazer um retrato seu, com esse topete classudo ;)

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