Densidade




Os japoneses não têm pelos, as japonesas não têm peitos nem bunda, mas têm pernas tortas. Os cabelos todo mundo gosta. Metade japonesa, poderia ter herdado um peitão ocidental, mas não, herdei sim as pernas tortas e os cabelos fartos e brilhantes que todo mundo gosta, além de ter nascido com a mancha verde azulada na bunda que depois some, um carimbo de certificação japonês no meu imaginário. Na adolescência meus cabelos eram minha tábua de salvação, compridíssimos, apesar de ser incapaz de jogá-los, por timidez, como faziam as meninas dançando, jogando vôlei ou na hora do recreio sem motivo, eu achava super exibido. Mas nasciam esquisito, desde a nuca, e eu pensava, pra quê?


Peguei a moda da calça baggy, enfiadíssima na bunda e apertadíssima na cintura, sempre acreditando ter a bunda mais horrorosa da face da terra. Tinha um espelhinho que era meu (in)fiel escudeiro escondido entre uma pilha de calças no guarda-roupa para me mirar de costas no espelho de corpo inteiro todos os dias e me odiar. Depois essa moda passou mas o estrago já tava feito. Mudar o olhar é mais invasivo que uma cirurgia profunda. Fui muito infeliz com meu corpo até lá pelos quarenta. Aqui, peço atenção aos que acham mesmo sem admitir, que não há vida depois dos quarenta. E não imaginem uma coroa assanhada com síndrome de Peter Pan escrevendo. Eu juro que há. Mesmo, mesmo, mesmo. Eu inclusive não acreditava. Pois não só há, como continua (quase) tudo na mesma. Não há aquele amadurecimento e calmaria à vista, uma espécie de sentimento que eu sempre imaginei como uma anestesia às aflições, aos sofrimentos, uma apatia. A gente não passa a pairar sobre a vida, continuamos imersos e problemáticos sem virar chave alguma. Mas algumas coisas impressionantes realmente nos acometem.


Não foi de repente, foi aos poucos, sorrateiramente, que comecei a achar não só a bunda linda, como todo o resto. Escutava da moça da mamografia puxando meu peito com força, “suas mamas são densas, impressionante”. Olhei com atenção gravuras japonesas safadinhas e olha minha bunda lá, tão bem desenhada, um único traço curtinho minimalista e voilà, achei chique.


Assim como passei a cultivar com esmero aqueles fios antes malditos que nascem desde o pescoço e que a cabeleireira sempre raspava. É um charme a penugem que desenha a nuca, que no Japão é venerada e tem até nome, que as gueixas ressaltam com maquiagem e emolduraram com as camadas de tecido de  kimono que caem curvos, uma dádiva afinal.


Foram duas vezes no Japão, uma imersão, a galgada ao avesso do olhar sobre mim mesma, o patinho feio que se descobriu cisne. Um alento. Parece exagero, mas não é. Venho refletindo muito sobre o fenômeno Japão sobre mim.


No onsen, através da névoa úmida de vapor quente que sobe do espelho d’água, assisti admirada em slow motion cinematográfico o belo balé das japonesas se lavando. Mimetizei. Que pertencimento poderoso. Parecemos golfinhos lisos e molhados, brilhando sob a camada d’água. O contraste do cabelo preto com a pele alva, meus peitinhos densos e minha bunda minimalista são desenhos lindos, as pernas tortas têm irmãs idênticas e andamos todas com passos convexos e introspectivos, uma ginga ao contrário. Dei graças às deusas que não coloquei silicone e lembrei de como sempre admirei a beleza da minha mãe pelada sem perceber o porquê.


No sumô a densidade é explícita, os corpos compactos sob o impacto do encontro espalmado produzem um som estalado  impressionantemente forte. O penteado é sofisticadamente modelado, a coreografia enigmática e viril. Bonito demais.


Sou a mesma, mas meu olhar antes torto tem agora todo o direito de me admirar e o aval para isso, sem modéstia, correndo atrás do tempo perdido.


Novembro de 2019.

Gravura Kitagawa Utamaro, 1799

Fotos Carl Silva


Comentários

Postagens mais visitadas