Beleza se põe à mesa

 

 


Das mulheres é fato e mau hábito, desde muito antes de Cristo (Ave!), suprimir sua liberdade, seja pelas ações do machismo, a maior praga humana, ou paradoxalmente quando o feminismo perde a mão em uma armadilha reviravolta. E aqui aviso que vos escreve uma ferrenha feminista, antes que joguem a primeira pedra.

Minha obatiam costurava sob medida e minha mãe ficava de olho comprido quando chegavam as revistas de modelagem trazendo as boas novas da moda na época. Anos depois, eu, diariamente, ou melhor, todas as noites, ficava encantada observando minha mãe separar de véspera o que iria vestir no dia seguinte. Uma composição sempre autêntica e bonita montada na frente do espelho e para meu doce deleite, reforçando o desejo pela chegada libertadora do “quando eu crescer” e for dona de um acervo assim. Se fosse sexta-feira, o branco predominava, com pulseiras do Mercado Modelo de Salvador, de marfim dos anos setenta, do Marché aux Puces de Paris, um lenço no pescoço, batom vermelho e tamancos holandeses nos pés, marchando toc, toc, toc, pela casa. Camadas de escolhas, pinceladas de atitudes, um arranjo orquestrado poderoso. Acostumei-me até demais com esse universo vaidoso. Tive fama, totalmente perdoável, de criança cafona. Livre, leve e solta para experimentar, a infância serve para isso, depois refina, ou não, porque sempre o mais importante é a tal da liberdade. Genuinamente cultivei o gosto por me vestir, me enfeitar e generosamente me apelidei de perua do bem. Essa maneira de me comunicar com o mundo tornou-se tão sobressalente que culminou sendo meu ofício. Assim como havia acontecido com minha mãe. De arquitetas tornamo-nos estilistas. E já posso considerar até uma tradição essa história de vestir mulheres que começou com a mãe da minha mãe, passou por ela e finalmente chegou a mim. Matriarcado dos vestidos.

A casa abriga e a roupa veste. Ambas em sua execução exigem a união da emoção à razão, da beleza à matemática, da estética à estratégia. O decote e o tirante, o drapeado e o caimento, o assimétrico e o equilíbrio. O vestido é o elã do guarda-roupa, incorpora as proporções desejadas de cima abaixo, é equação de busto, cintura e quadril solucionada numa tacada só, “cqd, como queríamos demonstrar”. E por isso, mesmo quando desenho duas peças, teimo e apresento um conjunto, contem com minha astúcia. A roupa inteira, é o exercício maior do desenho, exaltação da feminilidade. Sim, feminilidade no sentido literal da palavra e não no deturpado. Vejam só que triste ironia, ao mesmo tempo que significa “estado particular da mulher, comportamento feminino”, pejorativamente, também traz a versão, “maneira de agir que denota futilidade, frivolidade”. Erva danosa esse machismo impregnado que aparece em qualquer fresta e na atmosfera, maldição. Na caça ao machismo não podemos nos levar à fogueira.

Cheguei quase a acreditar que sendo estilista, desempenharia um papel fútil no meio de tantas bandeiras, tanta panfletagem. Travou-se uma guerra anti-consumo que nada tem a ver com meu trabalho. Ao revés, bato o pé, me fortaleço e tenho todos os dias cada vez mais certeza que calculo e valorizo cada centímetro do corpo das mulheres a nosso favor. Cuidado com regras disfarçadas de boa ação sustentável que ceifam nossos desejos. E obviamente não estou discursando pró consumo exacerbado. Jamais. Até porque quanto mais for usada e repetida, e lavada, e usada mil vezes uma roupa que eu criei e que você ama, que você não quer descartar, mais eu acertei. Desenhar uma roupa é produzir beleza, esse substantivo que só poderia ser feminino mesmo. Minha intenção é dar instrumento de comunicação, falar pelo visual, incrementar a vida, elevar a potência que nós mulheres carregamos desde que existimos, antes de todo mundo.

 

Fevereiro, 2022

Foto Carl Silva


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