ETERNIDADE



 

 

Na matemática imprecisa da vida, quando o tempo, tempo, tempo, tempo, ora se esparrama generoso e demorado, exibindo elástico toda a sua plenitude, ora sucinto, caminho no seu compasso e descompasso, equilibrista na relatividade. 

 

Quando eu tinha menos de um terço da minha idade hoje, queria devora-lo, tornar-me mulher logo, cansada de ter as bochechas apertadas sem meu consentimento, latejando e vermelhas, de usar todos os tipos de aparelho para desentortar os dentes, de já ter que usar sutiã sem ter peitinhos ainda. Lembro de costurar roupa de boneca de manhã e imaginar como beijar de língua de noite, de não conseguir olhar um menino nos olhos sem ruborizar e perder o jeito, de ser caçoada na educação física e ser a última escalada para o time, quanta inabilidade. Vestir calça jeans para me sentir um pouquinho enturmada, foi um suplício, um incômodo que apertava até minha alma. Aceita na patota, porém gangrenando a brecha, era a moda da calça baggy enfiada na bunda, uma guilhotina em forma de roupa. Ligar para o menino de quem tava afim naquela semana só para ouvir um “alô” e desligar com palpitação. Ensaiar enfrentar a timidez e esquecer tudinho na iminência do embate, de viver eternamente solitária no platonismo, de sonhar dançar lenta com a cabeça apoiada no peito quente do gatinho com bigodinho de penugem suado, mas ficar a ver navios, com o coraçãozinho nas mãos. 

 

O primeiro beijo foi ridículo. Um tampax mal colocado com aplicador e tudo pra dentro me desvirginou, apesar de ter lido de cabo a rabo três vezes o manual com um dos pés apoiados no bidê, cheia de incerteza sobre meu próprio corpo. Domei a timidez na marra quando resolvi ser eloquente e acabei prolixa com certo carisma. Em academia de ginástica só passei e senti muita vergonha alheia, o próprio peixe fora d’água. Treinei mesmo não desviar mais meu olhar, que antes dava voltas fugindo e mirava para o chão. Deixei de esconder o sorriso com as mãos como fazem as japonesas, tampando os dentes com as pontas dos dedos, como se o sorriso fosse obsceno. Meus dentes teimosos de baixo voltaram para sua tortuosa disposição original. Decidi não vestir mais calça jeans, mas usei sutiãs com bojo e taças, ingênua trapaça. 

 

Beijo bem, sou quase exibida, calculo e me arrumo intencionalmente vistosa e escrevo para falar menos, olho nos olhos sem pestanejar, inventei um topete só meu, desenho as minhas próprias roupas, queimei meus sutiãs de espuma e arame, considerei dente torto um charme, o peito masculino que me acolhe é um sonho conquistado.

 

Ontem fez um calorão fora de época, um portal morno e sexy se abriu, sentamos na calçada para esperar as empanadas assarem, um perfume de especiarias no ar, pegamos duas cervejas, um ventinho quente soprou meus cabelos fazendo cócegas nos ombros à mostra, me senti bonita, molhei a garganta, sorri de volta, desinibida, cheia de mim. Ele me apontou a câmera fotográfica, com as alças enroladas nas mãos, desvendou meus segredos, furou meu bloqueio, desarmada esqueci tudinho que a vida me ensinou, regredi. Desviei o olhar, lembrei dos dentes tortos, escondi meu sorriso, baixei a cabeça.

 

Às vezes o tempo me dribla e sou aquela mesma mocinha com um terço da minha idade.

 

Setembro de 2020.

 

Foto Carl Silva




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