QUARTO AZUL

 



Yves Klein carimbou peitos e bundas com o tom de azul que leva seu nome, mas muito antes de conhecer a tal performance, ganhei junto com a Teresa, minha irmã, um quarto com teto colorido desta cor hipnotizante, em pó xadrez, pintado pelo nosso pai, com direito a constelação de star fix fosforescente quando a luz apagava. Mil e uma noites admirando aquela via láctea particular emoldurada pela fita crepe nas arestas do teto com as paredes, para não borrar a tinta, mas que nunca foi tirada, até perder a cola. Imperfeições do perfeccionista. Acho que foi daí que comecei a dormir de barriga para cima, como uma mortinha viva, hábito que carrego até hoje, evitando as rugas. Era uma beliche e, como irmã mais velha, eu era dona da cama de cima, com a vista privilegiada bem perto do céu. Toda noite caía no sonho, mergulhando no azul.

E meu pai não parou por aí, fez o décor surpresa para as suas meninas enquanto passamos um dia fora passeando. Montou prateleiras com mão francesa acima da escrivaninha americana, móvel digno para os estudos. Fazer lição jogadas no sofá, sem postura e com tv ligada então, era risco de sermos deserdadas. Uma vez ele voltou mais cedo que de costume, quase nos pegou no flagra. Foi um barulho de chaves, pânico e cumplicidade instantâneos, fazendo com que eu e minha irmã tacássemos o material escolar para dentro do quarto e como em um filme de Kung fu, voássemos em uma coreografia esperta do sofá para a cadeira da mesa em uma fração de segundos, desligando a televisão no meio da voadora, que ainda por cima tava passando novela. Seria a morte. A escrivaninha tinha uma tampa chique que se fechava com uma esteira em curva com cheiro de lustra-móveis, era toda compartimentada para as canetinhas, bloquinhos e clipes, com a primeira gaveta trancada à chave para o diário e segredinhos inocentes. Fixou na sua borda, um senhor apontador de manivela, com compartimento transparente para as lascas dos lápis, que lá caíam encaracoladinhas. Ajeitou um abajur de leitura cromado para clarear as ideias e incentivar a leitura. Tenho todos os motivos de ser analógica. Sobre as prateleiras dispôs os livros perfeitamente, diga-se que não é em ordem crescente ou decrescente, que tédio, mas sim, organicamente, oras em pé, oras deitados, agrupados por cor ou espessura, capas duras e lombadas bonitas em destaque, entre uma latinha de azeite bonita e outra de chá Earl Grey já enferrujada, com lápis e tesoura dentro, souvenirs da torre Eiffel, móbiles de papel flutuando, um abajur-bibelô de cachorrinho branco de madame, todo furadinho, de louça, por onde vazava a luz em pequenos raios, um bloco de papel de cartas que ele trouxe de presente de Paris, lindo, com desenhos circenses, que eu não trocava por nada com as amigas, apoiado em frente à pilha dos livros que não eram tão bonitos. Ao lado, um caleidoscópio que fazia um barulhinho gostoso demais quando as continhas escorregavam se exibindo através do orifício, contra a luz. E mais luminárias pois iluminação indireta nunca é exagero. Expôs as bonecas de pano nordestinas, uma família de retalhos, que eu achava feia e mal feita, que naif que nada, eu era cafoninha raiz, preferia a Barbie. Mas meu pai na sua doce curadoria, a deixou escondida dentro da gaveta. Depois eu dei meu toque e enfiei a americana lá no meio plantada sobre seu pedestal de plástico, deslocada, coitada, destoando da turminha artesanal. A boneca grande, recheada de macelinha e com rosto rabiscado pela minha irmã criativa com canetinha turquesa que não sai e que a Magali, nossa primeira cachorrinha, mastigou uma das pernas, pôs sentada em destaque, com as pernas cruzadas, disfarçando os furinhos. Mesmo vítima desses ataques, ela era especialmente linda, com seus cabelos de barbante de algodão tingidos de salmão e cheirinho da natureza perfumando o quarto. Meu pai falava, essas bonecas de pano que eu trouxe para vocês de presente são muito mais bonitas que a Barbie com esse peitão.

Pai, seu olhar melhora o meu. Sou fissurada por agrupar objetos, colecionar belezas, guardar latinhas, acender dez abajures, mas jamais uma única luz fria, esse veneno assustador que dá cabo a qualquer ambiente numa tacada só. Acho o peitão pra frente e duro da Barbie feio mesmo, você tinha toda razão. Ainda quero pintar o teto do meu quarto daquele azul para dormir igual criança. Gostaria de recuperar minhas amigas nordestinas de pano, qual fim levaram? Saudades deste cenário relatado através de tantos diminutivos, a memória afetiva que é responsável por eu descrevê-lo assim. Não aprendemos a calcular imposto de renda, em compensação sei desenhar azuis. 

Junho de 2020.

Foto Carl Silva

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